Mano Ferreira e Otávio Batista
Tempo e espaço mantém um casamento antigo. Antiqüíssimo. Filósofos, poetas, físicos – muitos foram os que se dedicaram ao estudo, apreciação e exaltação dessa relação. No Recife, eles se encontram mais uma vez: se não com toda sua complexidade metafísica, certamente com profundo simbolismo. Quando o alvorecer na capital pernambucana encontra a Rua da Aurora, logo se nota o belo casal que eles formam. Daqueles que não se vê em todo lugar. Daqueles que só de olhar passa a segurança que, salvo uma catástrofe, eles permanecerão juntos, alvorada após alvorada. Daqueles que, como se diz por aqui, “dá liga”. Diariamente, as primeiras horas da manhã se encontram com aquela rua às margens do Capibaribe e, como é comum nos casamentos, um recebe o nome do outro.
Em torno deste simpático casal orbitam muitas figuras: os primeiros madrugadores da região, que vão à beira do rio praticar exercícios físicos ou caminhar despretensiosamente; os moradores de rua, muitos ainda desfrutando o que resta do seu desprotegido sono; um ou outro cidadão atarefado para algum compromisso. Dentre esses personagens, se destacam também os praticantes de remo do Clube Náutico Capibaribe: a passar pela rua com os barcos nos ombros; a se exercitar nas margens; a singrar o rio, remada a remada.
05h40min, cedo demais pra muita gente. Nessa hora, o técnico Cláudio Belo supervisiona os atletas na água – o treino já está perto do final. De pé em uma pequena praia de solo escuro e enlamaçado entre a margem calçada e a água, no meio da vegetação. O sol incide já ganhando força no espelho sombrio e sujo do Capibaribe. O calção estampa o escudo e as cores do Flamengo, vestígio da sua passagem pelo clube carioca. A camisa é do Náutico. Receptivo, o treinador sorri e, entre observações técnicas sobre os atletas que passam remando no rio, começa a nos contar sua história.
Cláudio é de Natal, capital do Rio Grande do Norte. Filho de remador, começou no esporte ainda garoto, em 1982. Nunca parou. Remou com grandes nomes do desporto nacional. Defendeu a seleção brasileira por vários anos. Disputou torneios internacionais. Quando o tempo venceu as vontades, virou remador máster. Junto ao pai, dirigiu o tradicional Sport Club de Natal, cuja fundação remete aos áureos tempos de 1915. A paixão o transformou em um multiplicador do conhecimento adquirido pelos anos de prática e pelo empenho que cultiva pela qualificação: virou um professor – ou talvez um irmão mais velho, corrigindo defeitos, talhando a técnica, dando dicas aos companheiros que vão surgindo, ainda moços a cortejar as águas para um namoro através dos barcos. Na direção do clube potiguar, costurou uma parceria com o Náutico. Há pouco mais de dois meses, desembarcou no Recife como um atleta máster – e ajudou o alvirrubro a vencer uma hegemonia de 25 anos do maior rival. Passado o campeonato, virou o novo técnico da equipe. Sua missão? Coordenar um trabalho que dissolva as barreiras da imaginação e rompa com os limites – do estado de Pernambuco, dos tempos nas pontas dos remos longos, das amarras da mente. “Aqui em Recife, apesar de ter mais estrutura que em Natal, a preocupação é muito local. Só existe o pernambucano. A rivalidade é muito grande, como no Rio de Janeiro – talvez por conta do futebol, a torcida exige. Lá em Natal, a gente se preocupa com competições maiores: norte-nordeste, brasileiro. Mas agora os meninos tão começando a pensar assim e estamos lutando pra disputar o regional esse ano”, explicou.
O céu ia mudando de tom e as cores do mangue iam mudando de aspecto – sinal que dali a pouco a equipe sairia do rio e os atletas trocariam seus trajes. Os maiôs colados ao corpo logo dariam lugar às fardas – do colégio ou do trabalho. Antes do banho nos vestiários, no entanto, havia todo um ritual a ser feito. Os barcos começavam a se despedir das águas: os remos diminuem os afagos à superfície do rio, na tentativa de amortecer a tapa que o esquife leva da margem; paralisadas as embarcações, os atletas desprendem seus pés e se levantam. Enfiam os pés na praia escura e, em dupla, suspendem o barco, de casco pra cima, os extremos apoiados nos ombros. Outro atleta se encarrega de levar vários remos, lotando os braços. Sobem a calçada e atravessam a rua.
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