24 dezembro 2010

Um perfil para o Natal

O natal é uma data para família. Nada melhor que celebrá-lo, portanto, com a história que sustenta a minha. Com vocês, minha mãe - que completou, neste ano que se encerra, o seu jubileu de ouro. Escrevi este texto, originalmente, para uma disciplina da faculdade. Com algumas correções, o compartilho agora. Feliz Natal a todos. E um belo 2011.
Nasceu numa família bem estruturada, de sobrenome influente. Era uma Falcão. A mãe Volínia, vanguardista, foi professora em meio aos anos 1950, quando poucas mulheres estudavam no Brasil. O pai, um ícone, também era professor... de química, biologia – às vezes, até de física.
Não foi a primeira filha. Hamilton, mesmo nome do pai, era o primogênito. Kátia, com vocação de mandona, a primeira garota. Harrison, divertido, o segundo menino. Kyria, dos olhos verdes, a segunda boneca. Hércules, o mais fraco, era o terceiro dos machos. Kyrtis, nossa personagem, a terceira das fêmeas.

Também não foi o final da fila. Keythys, a mais moça, interrompeu o revezamento dos sexos. Heidenberg, o caçula, quis equilibrar a família entre os K’s e H’s.

A conta fechava, à época, em oito filhos – além de um apurado gosto para nomes exóticos. O intervalo entre os partos foi sempre curto – não se respeitava muito o tempo de resguardo. Dizem que a mulher tinha medo que o marido, virilidade transbordante, procurasse aconchego na rua. Não se sabe se esse motivo tem de fato procedência, mas, em sendo verdade, a estratégia não surtiu muito efeito: numa noite de comemorações, família em torno de festejo, a cigarra cantou da porta e Volínia foi, simpática, atender quem quer que fosse. Quando a madeira, após o canto, dançou discreta até a parede, havia três crianças comportadas. Uma delas falou com timidez:
- Boa noite, viemos ver nosso pai
- Tudo bem, e quem é ele?, indagou a dona da casa.
- O nome dele é Hamilton Silva, respondeu um dos rebentos.
- Então, entrem; seu pai está na sala, foi a fala elegante da senhora esguia.

Dessa data em partida, mais três filhos no ventre do lar: Manoel, Fernando e Jorge. No imaginário das crianças, o pai passou, pois, a ser uma espécie rara de conquistador, um sedutor irresistível – mesmo que a mãe daqueles três garotos trabalhasse à noite, de aplacar desejos...

Não faltava nada naquela casa da Rua do Giriquiti, pleno bairro da Boa Vista. Tinha gabinete de leitura – lugar docente, a prover paixão por letras. Tinha sala ampla, com piano e mesa grande, onde a cada badalada de um sino, tocado por um dos muitos empregados, todos se juntavam para as refeições. Havia também histórias de fantasmas e assombrações, que eram tão assustadoras naquela época como são saborosas de se ouvir hoje em dia.

Volínia, nascida em manta de seda, não nutria vocação por afazeres domésticos. Era boa com ordens, mas não executaria sozinha uma única das suas exigências. Hamilton, vindo de Carpina, penou até obter melhores condições de vida. Tinha um jeito grosseiro (certa vez, Harrison, satisfeito após o jantar, pegou com a mão um pequeno farelo de cuscuz e comeu. Conta-se que o pai, ao ver a cena, perguntou irritado se o filho ainda estava com fome, mandou preparar mais um cuscuz completo e fez com que ele o engolisse todo – para aprender que não se deve beliscar farelos). Também tinha um jeito amoroso. Era comum que brincasse de cavalinho, os quatro membros no chão, afeito à montaria de seus filhos.

Mais três parentes, todos da linhagem Volínia Falcão, habitavam aquela casa: a mãe dela, Vó Alaíde, já viúva; e, ainda, dois irmãos: Tio Domingos, paralítico, morava lá desde que, traído e abandonado pela esposa, entrou em depressão – passava os dias em seu quarto, nos fundos da casa, a avisar em gritos (tão altos que se ouviam em todo o casarão – ou, ao menos, Kyrtis queria que se ouvissem) quando caíam mangas no quintal (ooolha a maaangaaa!!) ou a berrar a anunciação das horas pela observação do sol, sem olhadelas ao relógio (Quiinzeee hooraaas!!). Tio Odorico, as pernas freqüentemente feridas, também foi traído pela mulher: a partir daí é que foi morar na Boa Vista, mas desregulou da cabeça e vagava pelas ruas pedindo esmolas. Os três diziam ter um pacto de morte: o primeiro a morrer devia vir, rapidamente, buscar os outros dois.

Em meio aos anos 1960, um mundo polarizado exigia uma posição política clara para quem quisesse ser levado a sério como um intelectual. Hamilton queria. E tornou-se comunista, contra a opressão aos menos favorecidos – aqueles que não escolhem, mas comem farelo. Durante a ditadura militar, participava das reuniões clandestinas do partido, organizava atos rebeldes e discursava – em casa, para seus familiares; na rua, aos seus correligionários; no trabalho, para seus alunos.

Essa postura rendeu-lhe revezes. Algumas vezes enquanto estava dando aula, a tranqüila casa do Giriquiti, onde estavam seus filhos, foi invadida. Levavam os livros subversivos, nos quais ateavam fogo. As crianças ficavam assustadas, mas era somente um preâmbulo do que as esperava.

Hamilton seguiu sua trajetória. Numa bela tarde em maio de 1967, precisava ir a Goiana para dar algumas aulas. Já tinha passagem de ônibus comprada e o táxi o esperava no Giriquiti para ir à rodoviária. Quando entrava no automóvel, o telefone tocou. O professor Edvaldo, seu colega de profissão e partido, também ia dar aulas em Goiana e acabara de comprar um carro. Hamilton rasgou a passagem de ônibus, mandou o táxi embora e esperou o amigo, com quem viajou. Mais tarde, em casa, as crianças, sentadas no sofá de vime, assistiam ao Repórter Esso na televisão em preto-e-branco quando a vizinha Dona Carmelita mandou que desligassem o aparelho e ficassem quietas. Às pressas, chamaram Volínia, que estava na Universidade Católica. Hamilton, a caminho do Hospital da Restauração, precisava de sangue. Quando chegou, já não precisava mais. O carro novo capotou e os professores não resistiram. Oficialmente, um acidente rodoviário. Intimamente, Volínia nunca se conformou.

O caixão, preto, colocaram no centro da sala. Abriram cada porta e cada janela, a casa ficou inteiramente iluminada e rapidamente se encheu de gente. Amigos, familiares, partidários, professores, alunos. Keythys, ainda muito menina, foi colocada aos braços para se despedir do pai. Ao vê-lo, falou em sua inocência:
Hein, hein! Papai tá mimindo...

Deram um calmante pra cada filho e todos adormeceram, enquanto a casa ainda recebia visitas. No dia seguinte, levaram o corpo até a igreja da Rua da Conceição, onde foi celebrada missa. Vestiram as crianças de preto, mas não as levaram para o Cemitério de Santo Amaro.

Foi essa a época em que a vida de Kyrtis sofreu o primeiro e mais profundo corte. Tinha 6 anos e não esquece essas passagens. Perdeu o pai. Na mesma semana, a mãe mandou tirar uma foto de cada filho e fez um quadro, que ainda existe. Dentro de sete dias, a família foi novamente reunida na igreja da Conceição. Com um mês, mais uma vez. Na missa que celebrou o primeiro ano da morte de Hamilton, Volínia apareceu acompanhada: Everaldo, um jovem que havia sido seu aluno, passou a dividir seu lençol.

Entrou um padrasto na vida de Kyrtis, na velha casa do Giriquiti. E também começaram as saídas. Manoel, Fernando e Jorge voltaram a morar com a mãe. Com algum tempo, saíram os empregados. Livros, lápis e cadernos saltitaram para longe. Um pouco mais a frente, saiu a televisão. Depois, o sofá de vime. Saiu o piano. E, assim, todos os móveis, um a um. Saíram também os talheres importados. Saíram as louças alinhadas. Quando a casa foi ficando vazia, restaram lá dentro os oito filhos. Volínia gostava de sair com Everaldo – e os dois viajavam com certa freqüência. Vó Alaíde já não tinha mais a boa idade. Tio Domingos nem o sol via mais direito, pra poder gritar as horas. E o Tio Odorico, enfim, passou a ter motivo pros seus esmoleis pedidos, perdido pela cidade. Os três agregados da casa decidiram dar vida ao pacto da morte. Domingos foi primeiro. Odorico logo em seguida.

Volínia voltou de viagem. Tinha três pensões do marido e salário de professora, mas vivia apertada com as finanças. Vendo a casa esvaziada, decidiu vendê-la. E alugou uma outra, no Pina, rua Capitão Ribelinho. Lá, Vó Alaíde, com menos de um ano da despedida de Domingos, despediu-se dos netos. Netos que adoraram morar perto da praia.

A casa da Ribelinho tinha móveis modernos, desses que não suportam viver a história de mais de uma geração. Com pouco tempo, começaram a se quebrar. Everaldo, quando aparecia, punha a culpa nas crianças, traumatizadas que viraram vândalas, sem educação devida. Quis castigar os supostos infratores. Hamilton Filho, o mais velho, não aceitou receber ordens de alguém nascido na mesma década que ele. Saiu de casa pra morar no mundo.

Foi no Pina, com uns 10 anos, que Kyrtis arregalou os olhos de um jeito diferente pela primeira vez. Rapidamente, contou a uma vizinha, pseudo-amiga de plantão, que achava outro vizinho lindo e estava gostando dele. Na mesma semana, o tal menino, um adolescente, mais velho, chegou pra ela com uma frase que lhe marcou a mente:
Cresça e apareça, menina!

Um corte impiedoso na pequenina Kyrtis. Aprendeu ali que não podia confiar em qualquer plantonista de segredos alheios, uma lição que o tempo ainda lhe passaria outras vezes na cara.

Volínia comprou uma casa. Saíram do Pina com pouco tempo e foram morar no Cordeiro. Foi a fase mais difícil, com Volínia essencialmente nômade. Ela nunca parava em casa. E as crianças ficavam lá, sozinhas. Foi o tempo em que as barrigas compuseram dezenas de sinfonias, cada uma soando mais alto que a outra. Às vezes, os meninos roubavam manga na árvore da casa ao lado. Mas nem sempre era tempo de manga. Farinha com água foi o prato único de algumas semanas. De quando em vez, visitavam Tio Zé, dono de um bar, que lhes dava uma sopa de feijão, a alta gastronomia daquela fase.

As crianças crescidas foram aprendendo a se virar – e todos sobreviveram, mas nenhum deles sem seqüelas, que por vezes se esconderam nas entranhas ressentidas da correria pelo ganha-pão. Kyrtis, então com uns 11 anos e fina como um alfinete, foi levada pela mãe, receosa de que a filha, tão magrinha, tivesse tuberculose, até a casa de Dona Cristina, madrinha de Hércules, onde morou por um tempo. Foi uma época de céu aberto, sem muitas chuvas densas. Ajudava Cristina com os filhos, que tinham doença mental. Brincava junto com eles, fazia companhia, se divertia à beça. Foi lá onde reencontrou os livros, bons livros, belos livros – que lhe transportavam pela Terra, que lhe deixaram conhecer todo o Brasil, o Egito, Grécia e Roma.

A menina recordava dos irmãos. Hamilton era pai de família, casado, trabalhando num posto de gasolina. Harrison e Hércules viraram lavadores de carro. Keythys vendia amendoim. Kátia engravidou cedo, não casou e arrumou trabalho numa lanchonete – a Ventura Lanches, onde Kyrtis conheceu Dona Ruth, com quem passou a morar numa quitinete em cima da lanchonete, juntamente com Socorro, antiga empregada de Seu Ventura, o pai de Dona Ruth, que, por sua vez, tinha Socorro como uma filha. Tinha 12 anos e trabalhava junto com a irmã Kátia. Foi lá onde aprendeu muita coisa de limpeza e cozinha, que até hoje lhes são úteis. Foi lá onde aprendeu também novas sensações, de encontro de lábios. Teve seu primeiro chamego aos 14 anos, com Washington, fuzileiro naval, moreno dos olhos verdes, dez anos mais velho, ex-namorado de uma prima – motivo pelo qual o primeiro caso da vida da Maga (como os irmãos chamavam Kyrtis) se deu às escuras.

Tudo corria bem até que um dia Harrison a convidou para uma festa no Clube Náutico. Washington estava de serviço, não tinham conseguido se falar ainda naquele dia e, por isso, a menina relutou muito antes de aceitar o convite do irmão insistente. Mas aceitou. Chegando ao clube, a primeira visão do salão desferiu um duro golpe no orgulho – uma dor, sim, mas que não foi de amor. Washington, aquele que estava em serviço, dançava aos beijos com uma loira. Dançava e beijava impunemente, até que viu a namorada dançando sozinha e olhando pra ele. Tudo acabou ali. Quer dizer... tudo não. Washington sempre aparecia no Ventura Lanches, pedia desculpas, dizia que aquela loira era só uma prima e que queria muito voltar o namoro. Kyrtis sempre negava, mas a persistência semeou sua imaginação. Aceitou o convite de Washington para uma sessão no Cinema São Luiz. Pediu dispensa a Dona Ruth, dizendo que iria ao dentista. Na mesma hora marcada, surgiu em frente ao portentoso prédio da Rua da Aurora de mãos dadas com Fernando, um amigo da época. Não rolou nada durante aquela projeção de Experiência Pré-matrimonial, mas pulsava na Maga um delicioso sabor de vingança. Quando voltou ao Ventura Lanches, levou uma tremenda bronca da patroa. Washington esteve lá e contou tudo, sem poupar xingamentos cabeludos à aparente traidora.

A vida seguia seu ritmo e Kyrtis estava muito satisfeita. Era feliz, conhecendo muita gente – juízes, desembargadores, trabalhadores comuns, todos que passavam por aquela lanchonete. À noite, no verão, ia com Kátia para o Vamos abraçar o sol, um evento de muita música que acontecia na praia de Boa Viagem. Virava a noite na festa, até ver a aurora – e trabalhava no dia seguinte, pela manhã. Trabalhava muito, era verdade, mas gostava do que fazia – e não tinha muito tempo pra pensar se era muito o quanto trabalhava.

Certo dia, voltava da casa de Seu Ventura, de ônibus, junto com Socorro, quando avistou cinco rapazes no coletivo. Ela e Socorro, ainda antes da borboleta, cochichavam faceiras qual daqueles garotos seria o mais bonito. Para Socorro, ganhava o de camisa amarela. Kyrtis, no entanto, preferia o de preto. Quando decidiram passar pela catraca, o cobrador as surpreendeu:
A passagem de vocês já está paga
Como assim?, retrucaram.
Aqueles rapazes ali fizeram questão de pagar, informou.

A conversa, então, tornou-se inevitável e os rapazes se aproximaram delas. Pra compor uma daquelas ironias que não se explicam, o de camisa amarela, Flávio, quis falar com Socorro. Fábio, irmão de Flávio, vestindo preto, se interessou por Kyrtis. Socorro não foi bem aventurada e a conversa dela não durou muito tempo: Flávio desceu do ônibus com os outros três amigos – e não mais voltou à cena. Fábio, no entanto, gostou tanto de versar com Kyrtis que a acompanhou até a lanchonete. Ao fim da tarde, combinaram um filme. Junto ao fim de semana, Fábio voltou à lanchonete e foram juntos até o Cinema Veneza, na Rua do Hospício. Assistiram La Violetera e quando ‘alla fine’ apareceu na tela, já eram namorados.

Tiveram um namoro intenso, paixão de pulsar as veias. Foi Fábio o primeiro homem que fez Kyrtis suspirar. Uma história cujo principal cenário foi verde. Verde das praças da cidade do Recife. Não tinham muito dinheiro e, por isso, não podiam ter programas que exigissem maiores custos. Encontravam refúgio nos parques, onde passavam tardes curtindo aquele sonho, cujas quimeras mais freqüentes nasceram no Treze de Maio. Fábio planejava ser médico – e estudava pra isso. Kyrtis vivia o momento – e nem pensava nisso tudo.
Após seis meses de um romance pra nenhuma face de Pessoa arranjar defeito, o despertador tocou, como o sol a furar as nuvens, para acordar os dormentes, sem dó. Fábio também foi o primeiro homem a fazer Kyrtis chorar. Acabou tudo – simples assim, sem maiores explicações.

Um corte difícil de ser entendido.

Socorro passava por alguns problemas. Tinha começado a beber e perdeu as noções de limite: virou alcoólatra. Num dia que deu vexame, Dona Ruth perdeu a paciência com quem sempre chamou de filha: dessa vez, chamou foi a polícia, que levou Socorro embora. Kyrtis ficou assustada e não soube o que pensar. “Como alguém chama a polícia pra quem sempre chamou de filha?”, martelava sua cabeça.

Com um sentimento estranho de sua patroa, decidiu sair de casa. E acabou o ciclo de Kyrtis no Ventura Lanches, onde sempre foi feliz. Tinha uns 16 anos e, mais uma vez, foi se arriscar num lugar novo. Correu pra perto de quem confia e procurou Harrison, seu irmão. Moraram, os dois, na favela do Coque.

Passou um tempo desnorteada, sem nem entender que assim estava. Não trabalhou nesse período. Ficou no Coque até que Kátia entrou em cena mais uma vez. Já com 2 filhos nascidos, a irmã mais velha levou Kyrtis de volta à casa do Cordeiro. Passou pouco tempo, no entanto – menos de 6 meses. Foi visitar Jolibeu, um primo distante que morava no segundo jardim de Boa Viagem. Ele era motorista de João Santos, um rico empresário da região, que sempre lhe foi muito generoso – a ponto de garantir ao chofer uma condição de vida confortável. Mais velho, o primo sempre a tratou muito bem, como uma filha. Tão bem que a visita durou dois anos, período em que Kyrtis curtia a praia todas as manhãs – e ajudava com a casa durante a tarde. A fase só acabou porque o enteado de Jolibeu começou a demonstrar, especialmente nas madrugadas silenciosas, íntima intenção para com Kyrtis, que não quis nada com ele e foi embora da casa.

Voltou para o Cordeiro – foi passar mais uma temporada com Kátia, que agora tinha três filhos. Nesse período, aprendeu um novo ofício: virou manicure – e assim se sustentava. Com pouco tempo, lá foi Kyrtis mais uma vez: novo endereço, agora Santo Amaro, sob o teto de Kyria. Kyria, recém “casada”, havia conhecido o marido, Zinho, há um mês. Rapaz meio amalucado, ele batia ponto numa companhia de planos de saúde. Foi Zinho quem apresentou Kyrtis a Aemar, gerente da Golden Cross e dono da casa em que Kyrtis foi residir e trabalhar, dessa vez como babá. Aemar foi um bom amigo e conseguiu um novo emprego para Kyrtis, como office boy, na empresa que gerenciava.

Durante todo esse tempo, Kyrtis sempre ia ao Treze de Maio, ora com Kátia, ora com Kyria, às vezes sozinha. Sempre sonhava acordada, imaginando reencontrar Fábio – e pensava qual poderia ter sido o motivo pro fim do romance. Telefonava pra casa dele, mas nunca soltava um som se alguém atendesse. Escreveu algumas cartas, que não sabe se enviou. As lembranças teimavam em voltar, mesmo que ela tentasse arremessá-las ao longe – vinham como um bumerangue, mas ainda mais intensas.

Kyrtis tentou disfarçar a saudade, sufocando a angústia em outras bocas. Nada com muita significação. Dentre as andanças, reencontrou o menino do Pina, aquele que a mandou crescer – ele a reconheceu e, gostando da mulher em que a menina se transformou, quis marcar um cinema redentor, convite ao qual ela fez questão de responder assim:
Cresça e apareça, menino!

Outro caso que merece destaque é Luciano, irmão de Fábio. Ficou com ele só de pirraça, pra ver se atingia seu ex-namorado – como um seqüestro, que só serve pelo resgate. Resgate que nunca veio.

A fase de muitos números acabou com Tonês, com quem Kyrtis namorou pra valer. Um namoro que nunca fez sentido. Ele não a aceitava do jeito que ela era, modesta e sem grandes ambições. E ela não aceitava a não aceitação dele, que exigia planos grandiosos e glamour. Foi uma relação fadada ao fracasso, que também não durou muito. Mas foi graças a Tonês, o sujeito que ela não sabe dizer como namorou, que ela conheceu Seu Osvaldo, tio de Tonês. E foi graças a Seu Osvaldo que ela conseguiu um emprego na Rematel, uma empresa de material elétrico que pertencia a Seu Aquino, amigo de longa data do tio de seu ex-namorado. Foi contratada como telefonista. Das recordações com Fábio, suas atenções se voltaram ao trabalho. E, empenhada, aprendeu muito na Rematel. Não se contentou em atender ligações. Aprendeu datilografia – começou batendo documentos já escritos à mão, depois foi ela mesma a criar os textos. Aprendeu a organizar o arquivo – e acumulou as funções de telefonista, datilógrafa e arquivista. Ganhou a confiança do chefe, Seu Aquino. Quando Seu Osvaldo, que trabalhava como encarregado do escritório, se aposentou – foi ela quem herdou o cargo.

Ganhava bem, sem depender dos outros, e a vida ganhou uma estabilidade que ela nem lembrava ser possível. Morava novamente com Kyria, a irmã com quem tinha mais afinidade, e tudo estava muito bem assentado.

Em dezembro de 1981, surgiu um novo colega de trabalho, que seria seu subordinado, vindo do interior para tentar estudar em algum curso pré-vestibular. O primeiro contato com ele se deu pelo telefone, notificando serviços que deveria cumprir. O office boy era praticamente um bicho do mato. Na segunda semana, conheceu o rapaz pessoalmente, era magro, muito magro e tinha 18 anos. A convivência foi se intensificando, ela apresentou o novato à sua irmã Kyria e uma boa amizade foi formatada. Rapidamente, João manifestou interesse por Kyrtis, que ainda pensava em Fábio. Kyria, mexeriqueira, resolveu acender um fósforo naquela alma saudosa e carente, incentivando a irmã a dar uma chance pro Joãozinho. E assim, meio à contra-gosto, Kyrtis convidou o colega de trabalho a passar o natal com ela. Haveria amigo secreto. Para que João não ficasse de fora da brincadeira, Kyrtis comprou um presente extra pra ele, que também a presenteou. Ao fim das atividades, foram até a parada de ônibus. Lá, João fez o pedido, que foi aceito por Kyrtis. Viraram namorados. Ela não levava a história muito a sério – e tentou acabar a relação algumas vezes nos meses que se seguiram. Ele, olhos claros, bom de papo e pernas grossas, sempre a convenceu que tentasse mais um pouco. Com a continuação, Kyrtis percebeu o quanto João gostava dela – e isso a cativou. Namoraram escondidos de Seu Aquino, que não aceitava relações entre funcionários. A história foi se solidificando e os sentimentos amadureceram. Três anos e muitas histórias depois, resolveram casar. João havia sido aprovado em concurso do Banco Econômico e estava de saída da Rematel. Foi quando contaram tudo ao patrão, que ficou indignado com tamanha “traição”. A indignação, no entanto, diminuiu com o chamado que seguiu a notícia: Seu Aquino foi padrinho de casamento.

A rotina de recém-casada foi difícil. Compraram uma casa em Maranguape II, Paulista. Kyrtis trabalhava no centro do Recife. João, no entanto, se deslocava todos os dias até Jaboatão – e, ao fim do expediente, assistia aulas de Administração (havia passado no vestibular) na (então) Fespe, em prédio localizado em frente ao Sport Club do Recife. Neste período, o rubro-negro João passava mais tempo dentro do ônibus, em deslocamento, do que em casa, com a esposa. Ela não queria ter filhos. Ele queria um panteão de ídolos rubro-negros.

Dois anos depois, João havia acabado de passar em outro concurso, dessa vez para Celpe. Entrou na empresa como um funcionário do departamento pessoal. Kyrtis havia virado vendedora e ganhava boas comissões. Mudaram-se para um conjunto habitacional na Avenida Recife, muito mais bem localizado. Foi quando, 1986, surgiu o primeiro filho, Pedro. Más experiências com babás, junto a uma crescente melhoria financeira, motivaram Kyrtis a abandonar o emprego poucos anos depois. Ela decidiu ser mãe – e se dedicar exclusivamente aos filhos e à casa. Filhos, no plural, porque em 1990 nasceu este que vos escreve. E em 1994, veio um terceiro rebento, Luís.

A vida de Kyrtis tornou-se estável. Cuidava dos filhos e cultivava amizades. Tinha longas conversas com os vizinhos do prédio. Tudo seguia seu ritmo até que um telefonema quando Luís estava com 5 meses de nascido alterou a rotina.
Advinha quem está falando..., disse uma voz conhecida.
Eu sei quem é, mas não estou lembrada, respondeu Kyrtis.
É Ivo, seu amigo de muitos anos
Eu sei que não é Ivo, surpreendeu Kyrtis.
Quem fala aqui é Fábio, se entregou.
Não sei quem é Fábio, dissimulou a Maga, que logo desfaria o jogo.

Fábio havia avistado Kyria em um jogo de futebol. Não perdeu a oportunidade de conseguir o telefone da ex-namorada, mas para isso usou-se de Ivo, um amigo em comum com Kyria e Kyrtis, que o acompanhava no dia. Foi Ivo quem falou com Kyria e pediu o telefone.

Na ligação, Fábio e Kyrtis marcaram um encontro. Não seria no Treze de Maio. A praia de Boa Viagem foi o local escolhido, para que conversassem e tomassem uma coca-cola. Ficaram juntos por mais de uma hora. Contaram como estava a vida. Fábio virou médico, como traçava. Estava casado e tinha filhos. Mas nunca esqueceu de Kyrtis e dos seis meses em que viveram intensamente. Como prova, mostrou na carteira uma foto dela que guardava consigo desde os tempos da juventude. Sua esposa morria de ciúmes, mas contribuía para manter vivas as recordações em sua mente: chamava-se Karla, com K – e tinha mais 3 irmãs com a mesma inicial -, além de uma mãe chamada Ruth.

Kyrtis quis saber o motivo do fim da relação. Fábio explicou tudo: não agüentava a pressão da família pelos estudos para medicina – e todos, familiares e amigos, diziam que seu namoro consumia todo o tempo, sem permitir que ele se dedicasse a qualquer coisa além. Por isso, para estudar e diminuir a pressão que sentia, pensando no futuro, Fábio acabou o namoro.

Combinaram de se ver outras vezes – e assim o fizeram. A família toda de Kyrtis, João deglutindo o ciúme, foi até a festa de aniversário do filho mais novo de Fábio. E muitas outras vezes ele quis sair – e ligou com freqüência no telefone residencial. Kyrtis, com medo da carne fraca, decidiu afastá-lo. Parou de responder os pedidos, evitou encontros e trocou o número do telefone.

Ao longo da vida de casada, Kyrtis desenvolveu um gosto por receber pessoas. Recebeu muitos, às vezes ao mesmo tempo – por diversas circunstâncias. Dois filhos de Kátia, George e Paula, moraram anos com ela – além de outra, Karla, que sempre contou com a tia como um apoio. Uma filha de Kyria também morou, Mércia. Assim como um filho de Keythys, Moacir. O irmão mais novo de João – bem mais novo – também foi acolhido quando veio ao Recife, Fernando – e também por mais duas ocasiões posteriores. Passando por dificuldades ao fim da vida, também foi em Kyrtis que Volínia encontrou abrigo. Hamilton, seu irmão mais velho, também passou anos com ela. Quando sua sogra Maria adoeceu foi tratada em sua casa – até que não mais resistiu. Manoel, seu sogro, desde então viúvo, recolheu-se a casa dela quando não mais sentiu seguro de se aventurar sozinho ao mundo. Amigos de seus filhos, com famílias não tão bem estruturadas, vão até ela pedir conselhos e auxílio – casos de Márcio e Felipe.

Com o número de moradores da casa em alta, o apartamento ficou pequeno. Compraram, então, uma casa, em 1999. A morada da Lagoa do Araçá é tão grande (e talvez seja até maior) que lembra aquela casa da Rua do Giriquiti.

A rotina em família voltou a ser alterada nos anos 2000, quando Kyrtis, incentivada pelo marido, decidiu voltar a estudar. Fez supletivo e pré-vestibular. Com 2 anos, entrou na faculdade e cursou Serviço Social na UFPE. Hoje já está formada, mas seu estilo foi modificado para sempre. Estudou especialmente a situação das crianças de rua, a fome e o abandono. Foram anos difíceis, de lembranças afloradas e passado presente. Passou a odiar o capitalismo, causa de quase todos os males da humanidade. Como o pai, virou comunista – ao menos, ao jeito dela. Não suporta consumismo – e também não quis voltar a trabalhar, “pela garantia do emprego de um pai de família”.

Hoje, Kyrtis está com 50 anos. Continua cuidando da casa e dos filhos. Sente falta do marido, a quem ama, mas diz nunca ter sido apaixonada por ele – e acha que ele continua apaixonado por ela depois de 30 anos de convivência. Mais tempo junto dela, somente algo que a acompanha desde os 15 anos, com uma pausa de três recentemente: o cigarro, que os filhos nunca gostaram. Além dos serviços domésticos, Kyrtis se ocupa participando de comunidades no Orkut, onde tenta modificar para melhor a vida de pessoas, incentivando valores positivos. Não costuma mais ler livros, um antigo hábito, porque acha que já aprendeu tudo o que podia com eles. Diz que é feliz. Para ela, o segredo da felicidade é não pensar: é sentir e se entregar à vivência do dia a dia. É menos feliz, no entanto, do que antes da faculdade – porque a consciência impõe uma certa tristeza.

João, hoje, é gerente do setor de contabilidade da Celpe. Profissional bem sucedido, galgou o sucesso de posto em posto. Também tem um escritório pessoal, que consome consideravelmente o que seria seu tempo livre. Ainda administra a antiga loja do pai, que fica em Panelas, cidade do Agreste pernambucano – motivo pelo qual viaja para o interior a cada 15 dias. Kyrtis não o acompanha, permanecendo em Recife.

Pedro, o filho mais velho, já está casado e trabalha na Souza Cruz, empresa de cigarros – produto que nunca gostou que a mãe usasse. Com 24 anos, já tem um filho na barriga da esposa. Manoel, este pobre escriba, tem 20 anos, namorada e faculdade de jornalismo. Para desgosto e preocupação da mãe, é um liberal, política e economicamente. Luis, o mais novo, tem 16 anos e faz ensino médio.

Dois filhos de Volínia seguiram a trajetória dos tios Domingos e Odorico: Hércules foi traído pela noiva, entrou em depressão e passou à mendicância – até que morreu atropelado; Hamilton, também traído, deprimiu-se tanto que passou três anos sem falar uma palavra – depois, parece que em compensação, não parou mais: desenvolveu esquizofrenia e até hoje é um tagarela.

E assim Kyrtis segue sua rotina. Gostando de coisas simples, delirando com uma canção. Sem nenhuma frustração, mas com desejos inconfessáveis. Lembra do pai, que há tanto tempo não pode mais ver, e tenta fazer discursos como os dele, de conscientização. Não sente sua falta, porque ele ainda não se foi. Não lembra da mãe, que ainda é viva, mas sente falta dela. Porque não lembra de um colo. Não lembra de um pentear de cabelos. Não lembra de ter sido encaminhada pra escola. Mas lembra que não queria ter tido um padrasto – ao menos, não tão cedo. E que não lamentava tudo isso, como tenta não lamentar até hoje. “Porque a vida é viver – sem medo, enfrentando o que aparece. Para isso, é preciso estar preparado, sem nunca ter tido preparo. A felicidade é ser – e eu optei por ser feliz. E aí, não devemos questionar muito... pra gostar de viver”.


“Eu sinto muito,
Eu sinto tudo,
Eu sinto tanto”

De um poema, que talvez nem exista.

Um comentário:

Hugo Siqueira disse...

Muito, muito bonito.