23 novembro 2010

Os garotos da garagem - parte 3

Em meio as nossas divagações matinais, Cláudio apareceu e nos apresentou ao grupo. Explicamos nossas intenções e todos, de pronto, foram muito solícitos. Já de início, alguns aspectos nos impressionaram: em primeiro lugar, o fato de que aqueles garotos dormiam todos os dias ali, juntos, longe da família – ao menos, longe de seus pais biológicos. Pudemos depois descobrir que os garotos da garagem são praticamente irmãos. E que dentre eles, há dois que são irmãos de fato: Marcos, o mais velho; e Lucas, o mais novo – dos quais falaremos mais adiante. Também descobrimos que, em meio a tantos garotos, há também uma garota. Wedja Stephany, 18 anos, é Fany, a Torebinha. Chegou ao remo a partir de uma palestra sobre o esporte em seu colégio. O apelido no diminutivo revela sua estatura, baixa para uma remadora – o que a faz ter de superar este desafio com empenho na parte técnica. A convivência em meio a tantos homens nem sempre é tão fácil e ela sente falta de uma companhia feminina na garagem. Como mecanismo de adaptação, a maioria dos meninos a enxergam como uma irmã, o que significa que procuram não notar sua feminilidade. Arthur, 16 anos, o mais falante de todos e que também chegou ao remo a partir de uma palestra em seu colégio, tem uma postura diferente. Ele já teve um namorico com Fany, mas ninguém fala muito a respeito. Quando tem a voz, Arthur rapidamente demonstra a altura de seus sonhos. Fala em vencer campeonatos brasileiros, disputar olimpíadas. Certos desejos que, pudemos descobrir depois, às vezes escorregam em atitudes de soberba. Mas que, no fundo, não deixam de constituir um sonho compartilhado com os colegas.

Após um bate-papo descontraído, Marcos, 18 anos, como um anfitrião expondo a casa pra visita, se disponibilizou para nos desvendar a garagem. Ela é estreita, sua fachada não tem mais de 10 metros. Para compensar, se aprofunda longamente. Na primeira sala, as paredes se preenchem de barcos estacionados, apoiados em suportes, um sobre o outro, como numa estante. As embarcações são batizadas em homenagem a pessoas que, de uma maneira ou de outra, contribuíram para o remo ou para o clube de um modo geral: dirigentes, ex-dirigentes, torcedores. E não é raro ouvir pela garagem declarações do tipo: “Quem foi que saiu com o Eládio hoje?” ou “Ninguém vai lavar o André Campos não, é?” ou também “O Hélio Monteiro ta lá fora ainda. Bota pra dentro!” Ah, isso descontextualizado...

Ainda na primeira sala, a seguinte inscrição recebe o visitante: “Aqui está o coração alvi-rubro”. A frase está escrita no parapeito do mezanino que serve de dormitório aos atletas. É, portanto, ali, sobre o coração alvi-rubro, que os garotos, despertados por Cláudio, levantam-se de suas camas todos os dias, às 4h30 da manhã. A cidade ainda está escura – e os garotos estão pegando seus barcos e entrando no rio. Por que será que jovens e adolescentes, em idade em que normalmente teriam uma vida social atribulada entre passeios com os amigos, atividades escolares e possíveis namoros, preferem se comprometer em prol da atividade esportiva? Pedro, 17 anos, o primeiro a adormecer todas as noites, também conhecido como “cunhado”, afirma sem titubeio: “eu gosto disso mesmo, de sofrer, treinamento forte, me lascar... Tentei vários esportes: futsal, natação, capoeira, le parkour, judô... Eu queria entrar no exército, mas aí meu pai me trouxe pra cá e eu gostei”. A passagem por vários esportes é comum entre os remadores. Afonso e Tripa jogaram futebol. Marcos fez taekwondo, karatê, natação e capoeira até lembrar que um tio, na juventude, remou pelo Barrozo para, enfim, procurar os barcos.

A continuar o passeio, viramos à direita, onde se encontra a sala de musculação. À primeira vista, parece uma sala bem equipada e Cláudio Belo termina por corroborar a impressão: “aqui é a sala de musculação. É uma sala boa essa, bem variada. Esses equipamentos aqui vieram lá do futebol.” A doação do primo rico é bem vinda, mas o treinador conclui: “É bom porque o pessoal pode escolher os exercícios que vão fazer, mas específico pra remo mesmo, a gente só usa três ou quatro aqui”. O maquinário é todo estilizado nas cores do clube. Umas peças se sobressaem, mais desgastadas que as outras, provavelmente anteriores à doação. Ali, sentados sobre os aparelhos para exercícios, pudemos, em mais uma visita, conversar longamente com Afonso, 20 anos. Ele é o segundo mais antigo na garagem: rema todos os dias, há 2 anos; pouco menos que Tripa, 19 anos, seu vizinho de jeitão calado, que o apresentou ao esporte. A casa de seus pais fica no mesmo quarteirão, mas ele faz questão de dormir com o grupo: “esse contato mais próximo com o pessoal me faz bem”, explica. Afonso trabalha com a mãe e o irmão num buffet que funciona no mesmo local de trabalho de seu pai. O emprego, então, é garantia da convivência com a família. Mesmo assim, a mãe às vezes cobra: “meu filho, você não vai dormir em casa mais não?”, nos conta o remador.

Nenhum comentário: