17 novembro 2010

Severino, Nenê e Chavez

por Mano Ferreira e Otávio Batista

São Lourenço, zona da mata de Pernambuco. Pegando uma estradinha deterra a partir da BR 408, surge o acampamento Maria Paraíba. Com cerca de 1.400 hectares, a terra correspondia aos antigos engenhos de cana-de-açúcar Curupati e Pixaú. Hoje, 326 famílias estão acampadas, pleiteando a desapropriação da terra para fins de reforma agrária. Famílias de cortadores de cana que há 5 anos trabalhavam na mesma área que hoje ocupam: as atividades da propriedade foram paralisadas devido a complicações judiciais envolvendo o proprietário e desde então nada saia desse chão – somente ações trabalhistas, que ainda estão em trâmite na justiça.

Dificultados em prosseguir com seus sustentos, os trabalhadores tiveram de procurar alternativas de sobrevivência. Trabalhavam em outras terras da região e iam dando prosseguimento a suas vidas. Foi quando apareceram pessoas de bonés vermelhos propondo uma solução: a ocupação das terras em que eles trabalhavam, a dos engenhos fechados.

Os emissários do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra fizeram na localidade o chamado trabalho de base. Ele intenta a mobilização dos trabalhadores rurais ainda não envolvidos no movimento. Consiste primeiramente numa visita de porta em porta para convocação de uma reunião, na qual os interessados participam, conhecem melhor o movimento e se envolvem em alguma ocupação na área. “O pessoal do MST veio, juntou o povo e a gente veio pra cá”, resume com muita eficiência Seu Severino Amaro.

Esse foi o primeiro contato de Severino com o movimento. Ex-trabalhador do engenho, depois de 30 anos de serviços prestados foi demitido quando da desativação e não recebeu seus direitos. “Eles demitem e mandam a gente ir pra justiça. Na justiça é uma demora danada, até agora nada”. Pai de oito filhos, Seu Severino é um acampado regular, ainda não tem envolvimento mais direto com a organização política do movimento. Sua mulher está inscrita no programa bolsa-família - e ele também trabalha fora do acampamento para garantir o sustento dos seus. “A gente não sabe ainda se vai ficar aqui ou não, aí não dá pra plantar muito. Tem uma macaxeirinha plantada, um feijão, mas tem que comer carne, né? Que vestir...”, afirma Seu Severino, ainda inseguro com o futuro do acampamento.

Participante do momento da ocupação, no dia 11 de fevereiro de 2010, o acampado explica como ocorreu. “A gente chegou de noite, veio um pessoal de outras terras. No começo teve um bate-boca com o pessoal do engenho, mas depois eles foram embora”. Essa prática de mobilizar pessoal em momentos importantes é comum, segundo o Sem Terra: “Para um ônibus ou dois aí, o pessoal entra e vai simbora”. Perguntado se havia algum tipo de exigência na participação, seu Severino foi enfático: “Não! Vai quem quer.” E depois de uma pausa disse: “Mas todo mundo quer, todo mundo aqui se ajuda; eu vou ajudar um companheiro a conseguir a terra dele porque eu sei que ele vem me ajudar quando eu precisar”, conclui o senhor acampado há menos de 1 ano.

Na micro-hierarquia da estrutura do MST, há diversos cargos. Dona Nenê, com quem conversamos, passou por vários deles. Pode-se dizer que ela construiu carreira dentro do movimento: começou como acampada, assim como a imensa maioria dos Sem-Terras; virou Coordenadora de Núcleo de Família, juntamente com um coordenador masculino, com o dever de liderar a mobilização dos companheiros assentados para atividades cotidianas; passou, então, a ser Secretária, cargo que exige extrema responsabilidade, pois administra o dinheiro arrecadado coletivamente em ocasiões de urgência, como a compra de remédios ou o socorro de algum enfermo ao hospital mais próximo; com a continuação, passou a ser Coordenadora de acampamento, sendo, junto com um homem, a principal líder do acampamento em que mora. Ao se destacar, Dona Nenê foi escolhida para ir a Caruaru, onde adquiriu uma formação educacional mais sólida, dentro dos princípios do movimento. Após esta capacitação é que, enfim, ela virou Dirigente de Brigada, mais um cargo que, por uma preocupação constante no MST frente à igualdade de gêneros, é compartilhado com um homem, e que ela ocupa até hoje. Isso significa que ela representa o MST nos municípios de Paudalho, Igarassu, Carpina, São Lourenço, Chã de Alegria e Camaragibe.

Para sustentar a atuação dessas pessoas, há uma complexa estrutura político-administrativa: instâncias locais, regionais e nacionais. Nos assentamentos, há os Núcleos, com seus coordenadores. Numa área maior, que engloba vários assentamentos, há a Brigada, que também possui seus dirigentes. Conjuntos de Brigadas são englobados na Direção Regional. De modo ainda mais abrangente, há a Direção Estadual para cada unidade da federação. E, finalmente, existe a Direção Nacional – onde figura João Pedro Stédile, o mais famoso líder do movimento.

O principal motor declarado de toda essa engrenagem é o Congresso, reunião de caráter nacional, com representação de todos os estados, que chega a reunir mais de 15 mil pessoas. Neste espaço, teoricamente organizado a cada cinco anos, deveriam ser definidas as linhas políticas de atuação do movimento: primeiramente, faz-se uma avaliação do panorama das últimas realizações para, a seguir, discutir-se as prioridades que serão encampadas no qüinqüênio que começa e, enfim, poder definir um planejamento estratégico que norteará a organização até o próximo Congresso.

Para uma análise parcial de como estão transcorrendo as atividades, há, a cada dois anos, outro evento com dimensão nacional: o Encontro, que elege os dirigentes nacionais. Nele, é possível atualizar e redimensionar as deliberações aprovadas pelo Congresso.

Observamos que, a despeito do tempo propagado pelos organizadores entre um Congresso e outro, não há, na realidade, uma regularidade crônica, com solidez institucional. O IV Congresso foi realizado em 2000, enquanto o V Congresso só aconteceu em 2007. Há ainda acusações de que as diretrizes aprovadas pelo Congresso são, na realidade, elaboradas pela coordenação nacional – e que a aprovação das matérias se dá sem a devida discussão prévia.

Chamam atenção certos pontos da linha política deliberada nos documentos oficiais do MST, pela distância entre certos elementos defendidos e a realidade sócio-política dos assentados: um projeto popular que “combata o neoliberalismo e o imperialismo”; a luta contra as privatizações e pela reestatização das empresas privatizadas; a construção da ALBA, organização dos países bolivarianos, liderada pelo venezuelano Hugo Chavez. Serão essas questões referentes à reforma agrária? Será que Seu Severino, ao falar de sua roça, da comida para os seus filhos e da roupa que precisa pra vestir, está preocupado com o neoliberalismo ou com a ALBA?

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